Governo startup? O uso do monopólio das informações

O Governo startup

A grande vantagem de ter uma carreira não linear, passando pelo setor público, setor privado, terceiro setor e ecossistema startup é conseguir ver sinergias e a real capacidade de parcerias. Ser parceiro é se colocar na posição do outro, achar caminhos de ganha-ganha. Ao ler a coluna de Renato Mendes (de alta qualidade, diga-se de passagem), reforçou a necessidade de aproximar os mundos. Provocou a ideia do governo startup.

A proposta da presente reflexão é dar luz a algo que pode gerar valor público. Um ativo de valor: as informações dos cidadãos nos inúmeros serviços públicos prestados.

É fácil falar que o Governo poderia ser mais eficiente. Quem já foi gestor público sabe o tamanho do desafio para implantar. Em grande medida estamos falando de uma cultura pesada de modelo mental de controle, de legislações arcaicas, de ausência de flexibilidade. Tudo isso com uma governança frágil, que envolve o necessário poder político para patrocinar e escolher lideranças que permitam as transformações desejadas.

Mas não há como negar que existe muito espaço para ser mais eficiente.

A mentalidade startup é bem-vinda no Governo. Isso não quer dizer que ele vá virar uma startup. Cabe entender como podemos aproximar esses mundos:

Imagine um gestor público que se depara com o desafio de gerenciar estoques de suas diversas unidades administradas, digamos farmácias populares. Ele é responsável por um volume alto de compras de medicamentos, que abastecem esses estoques e são distribuídas para centenas de milhares de cidadãos em várias localidades.

Imagine ainda que existe nesse processo um tremendo espaço para ter mais informação de ponta a ponta e usar essa informação para ação mais gerencial. O que ele pode fazer?

  • Demandar para a equipe de TI do governo uma solução.

A solução envolve outro ator público, seja um departamento interno, seja uma estatal com foco em serviços de dados e desenvolvimento de sistemas. Por mais que se possa ter capital humano de qualidade nesses órgãos, temos uma fila de prioridades e uma cultura tão ou mais contaminada e maltratada. O risco de atrasos, problemas de especificação e outros é gigante. O risco de não entregar e ficar um eterno jogo a culpa é de quem desenvolve ou especifica é brutal. Todos perdem.

  • Contratar essa solução na forma de um grande fornecedor de sistema.

Essa escolha parece milagrosa. Contudo, cabe avaliar em grande medida o custo/benefício. Estamos falando de contratos grandes. Considere que nesses grandes processos de licitação existem riscos grandes de atraso, de questionamento. Envolvem disponibilidade financeira e pressão política. Existe uma probabilidade imensa de assimetria informacional entre a demanda do governo e a compreensão da empresa de tecnologia.

É muito provável que inúmeras mudanças de escopo em função disso irão ocorrer. Um contrato complexo de gerenciar, com integração de sistemas e processos. O fornecedor sendo grande, traz consigo os problemas de uma grande corporação: pode ser lenta e não é focada no seu problema.

Existem ainda riscos de descontinuidade do software: não são raros os casos em que o governo compra um sistema e depois não tem recursos para mantê-lo. Em suma, o risco é alto e pode ser um jogo de perde-ganha, o fornecedor ganha um contrato, o setor público perde dinheiro. Não gosto nem de imaginar o volume de esforço que já foi descontinuado nesse sentido. Ineficiências brutais.

  • Terceirizar o serviço para o setor privado.

A solução pode ser tentadora. Mas envolve o tal mito de “privatizar”. Pode ter alta sensibilidade política para isso. Ainda por cima, estamos falando de algo talvez único em termos de dimensão/escopo. Um eventual prestador ruim compromete ainda mais o serviço e a sensibilidade política aumenta. Cabe entender bem o tipo de contrato e a forma como é possível compartilhar riscos com um eventual parceiro privado nesse formato. Não é uma decisão fácil e pode não ser recomendada.

Para soluções como essa, muitas vezes falta institucionalidade. O cenário com baixa estabilidade contratual. Isso pode ser lido nos contratos passados, o que pode envolver custo adicional por essa leitura de risco por parte do setor privado. O formato de compartilhar riscos pode não ser ideal e não ter os compromissos necessários para um serviço eficiente.

  • Não fazer nada de muito novo e manter o processo atual com seu melhor esforço.

Chegamos na provável solução vencedora. Desde que o serviço não seja uma tragédia, deixar como está envolve pouco risco. Contudo, infelizmente o tempo passa e a conta de uma ineficiência que se acumula em pequenas frações diárias por anos é gritante. O cidadão paga um custo gigante nessa opção. Corre-se o risco de faltar remédios, de atraso na entrega aos cidadãos, de problemas de desperdício, a catástrofe silenciosa de sempre.

Precisamos romper essa ineficiência, buscar alternativas. Ver o ativo que existe na posição do Estado como plataforma entre consumidores e produtores. Um posicionamento estratégico na Nova Economia.

Partindo do problema de querer mais informação gerencial, buscamos, a forma de desenvolver ferramenta de informação.  Acabamos pensando em um modelo de mudar a forma como é executada a própria distribuição.

Qual o valor que não exploramos? O monopólio que o Estado tem de distribuir e ter informação de centenas de milhares de pessoas que precisam de medicamento.

Em que medida alguém não estaria disposto a fornecer uma solução de captura das informações gerenciais necessárias gratuitamente para o Estado visando explorar exatamente esse ativo das informações?

Caso esse ativo seja de fato de grande valor, por que o Estado não poderia inclusive entrar como “sócio” de uma startup com essa missão? Garantindo sua tração inicial e tendo um ativo de participação bem regulado por um contrato.

Qual startup não gostaria de ter o poder do Estado atuando para garantir a tração inicial e a comprovação da solução proposta de seu negócio? E depois de validado poder monetizar vendendo a solução para outros agentes (seja ele outras unidades da federação ou para o setor privado).

Quanto a exploração de dados, em bases legais e éticas, não poderia valer para gerar outros negócios? No exemplo dos medicamentos, ter informações de valor para indústrias farmacêuticas, seguradoras, planos de saúde, ou mesmo informação para centros de pesquisa.

Existe uma discussão de que, ao fazer um movimento desse tipo, o Estado estaria entregando dados ao mercado que o capturariam e, no limite, dificultariam o acesso da população a remédios necessários. Tal discussão não observa a Nova Economia, nosso atual momento histórico, no qual os dados estão cada vez mais disponíveis e que a transparência é um valor e os dados públicos cada vez devem estar mais acessíveis.

Estamos falando de uma janela de oportunidade de grande valor a ser aproveitado.  Um ativo derivado de serviços prestados pelo Estado e formas de fazê-lo que gerem valor público.

Existe espaço para se ganhar eficiência na aproximação dos problemas de gestores públicos com a capacidade de empreender e o apetite a risco de investidores de startups. O cenário desse ecossistema no país tende a se fortalecer e é necessário pensar diferente.

Enfim, existe um infinito de possibilidades para se pensar fora da caixa na ótica de parcerias entre público e privado. Tudo envolvendo grande propósito e capacidade de impacto na vida das pessoas[i].

Temos de deixar de ver o governo como o pagador da conta, o investidor que assume o risco, ou o grande cliente.

Temos de buscar modelos em que o Estado é o parceiro que adiciona um ativo de tração para um novo negócio. Um parceiro que ganha um serviço de melhor qualidade ou mesmo um ativo societário de valor futuro. O Estado é uma plataforma de grande valor na Nova Economia[ii].

 

[i] A iniciativa do Brazil LAB é um passo de grande valor nessa caminhada. Caso não conheça, clique aqui.
[ii] Sobre plataformas, entendo o Governo como plataforma entre consumidores e produtores, segundo posicionamento estratégico apresentado no livro Plataformas (clique aqui). Existe também o papel de plataformas para permitir inovação segundo apresentado por Johson no livro De onde vêm as boas ideias.

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